O meu velho amigo Hans veio ontem me visitar, está aposentadão e mora perto de Limoges na Franca já há vários anos. Grande lateral direito, uma locomotiva diesel nos campos de futebol enlameados e cheios de neve das várzeas holandesas. O Hans é uma dessas pessoas que tem o dom de fazer a gente rir, à mim pelo menos. Tempos atrás teve um ataque cardíaco, coitado, bem no meio de umas de suas escapadas atrás de algum ponteiro esquerdo. Desmaiou ali mesmo, e por sorte paasava alguém que tinha feito um desses cursos de primeiros socorros e o reanimou até a ambulância chegar. O Hans quase morreu e o cirurgião que o desentupiu as veias disse que foi um milagre.
E milagres acontecem, eu acredito neles, pois é um milagre estar vivo aqui, escrevendo essas bobagens que escrevo, pensando essas bobagens que penso.
A esposa exagerada foi quatro vezes ao supermercado e voltou com sacoladas e mais sacoladas de frutas, as quais magnificamente colocou em exposicão em uma bandeja bem no meio da sala. O Hans acho que nem notou. Chovia muito, sentamos no sofazão, abrimos as garrafas de vinho tinto e relembramos nossas glórias passadas correndo atrás das pelotas. Futebol sempre foi prá mim. Uma paixão, porém para o Hans acho qu é muito mais, um culto ecumênico, uma forma de religião.
Sempre foi assim, infelizmente vai chegando nove horas da noite e vai me dando sono, comeco a bocejar, respirar fundo, vacilar, perder os fios da meada.
Hans reclamou que as galinhas do seu quintal não botavam mais, até xingou feio em holandês as coitadas das aves. Perguntei se era o mesmo galo que tinha, aquele gordão carijó, que prá mim tinha cara de bicha, ô galo cheio de trejeitos, como diria o Mirtão esse galo foi, é, ou um dia vai ser!
Papo vai, papo vem, minha mulher se gabou que eu sabia tudo sobre galos de briga, que os houvera criado em minha juventude lá nos tempos de Londrina. Pronto, a esposa do Hans é uma dessas francesas que não se contentam com explicacões simplificadas, e tive que inventarizar os pormenores de minhas experiências galísticas avícolas.
Ganhara emprestado um galo de um vizinho muito rico que morava do lado da frente de casa. Como tínhamos um terreno muito grande e vazio, com apenas algumas galinhas caipiras ciscando
tranqüilas, seu João me emprestou seu galo índio campeão de mais de 21 lutas nas rinhas proibidas
do interior de São Paulo e Paraná. Nunca vi galo mais lindo e orgulhoso como aquele. Entrou no novo terreiro como um conquistador, abanando as asas vermelhas enormes e cheio de si mesmo cantando forte e afinado, um canto que dava prá ouvir quarteirões de distãncia, apavorando de medo todos os outros galos concorrentes da vizinhanca.
As nossas galinhas caipiras e as branquelas de granja parece até que faziam fila, ciscavam excitadas em volta dele como que a espera de algum convite para uma grande farra, uma grande orgia. O galão galã passeava altaneiro pelo palco daquele meu teatro insólito, eles nem se davam conta de mim, eram os atores principais, aquele menino pobre e sonhador era apenas mais um expectador...
Notei que o papo desinteressava Hans, mas a francesa queria saber mais, os pormenores das lutas, das rinhas, dos rebolos. Que idade que eu tinha, como treinava meus galos, o que acontecia com os que perdiam as lutas. Sabe, gosto de escrever, mas não de falar muito de minha vida para os outros, ainda mais se for em outra língua, holandês por exemplo. Busquei na memória descolorida as cores e
nuancas de meus galos índios, a tessitura caleidoscópica de seda de suas penas das costas, a
musculatura rígida e firme daqueles atletas do meu passado. No fim foi gostoso lembrar disso, acho
que a moca ficou boqueaberta com todo aquele súbito conhecimento galístico. Notei que o velho
Hans cochilava um pouco. Eu também queria fechar os olhos e me esquecer de tudo, dormir trezentas horas talvez. Porém as noites foram feitas para serem curtas demais, talvez assim como a vida da gente, que vai passando como um vôo, tal qual meus galos índios e os cochilos do Hans...
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