woensdag 9 mei 2012

O Seu Zarpa

Quase quarenta anos já se passaram e de algumas coisas até hoje me lembro e me arrependo, de outras não, mas é que eu devo ter enchido demais o saco do coitado do seu Zarpa.
Isso acho que foi uma herança de irmão mais velho prá irmão mais novo, pois o Mirtão já aprontava as dele pro lado do velho. Seu Zarpa era aposentado e morava num casarão todo azul-piscina com um muro enorme bem alto também pintado de azul-piscina, as mesas, cadeiras no quintal, até o galinheiro com as sobras de tinta, na penumbra de minha lembrança de menino o mundo era azul-piscina assim como aquela casa de esquina que nem deve existir mais, apenas quase se apagando dentro de mim. Ele não gostava de moleques e perambulava o dia inteiro prá lá e prá de pijamas pelo quintal, cuidando das galinhas dele, varrendo calçada, acho que na verdade fugindo um pouco das ordens de dona Nega sua esposa, mulher taciturna que vendia roupas usadas na feira de domingo.
Eu não sei quando isso tudo começou mas sei que também entrei na dança e prá confessar era o Joe que puxava a fila, pois era só chuviscar um pouco e aquela rua sem asfalto ficava toda embarreada, a molecada se juntava em frente de casa, uns descalços, outros de "conga", "ki-chute" preto, uma bola "pelé" de plástico bem fino marrom, com as fotos do nosso ídolo da copa de70 gravadas. Não tinha time, era "todo mundo por si, Deus prá todos", agora o gol era sempre a parte mais limpa do murão azul do seu Zarpa. Prá mim aquilo era uma "masterpiece", com as boladas que ficavam manchadas como enorme jabuticabas de veludo na quela tela monumental. Ele ficava puto, aparecia no portão com uma faquinha dessas de pão prá furar as bolas que caiam do lado dele, dava carreirão na gente, mas sempre voltávamos com reforço em número maior ainda. Fazíamos "vaquinha", dez centavos por cabeça e alguém corria como um raio rumo à  mercearia do seu Brás da rua debaixo prá comprar novas bolas pelé, que diga-se de passagem, foram as piores bolas que já chutei na vida, pois eram leves demais como uma pena, e o vento as levava prá onde quisesse, infelizmente sempre do lado de lá do muro. Pensando bem, foram as melhores bolas que já chutei na vida, os gols mais bonitos ficaram marcados em algum muro também dentro de mim.
Era só passar algum pedidor de esmola, vendedor de Carnês do Bau, Mórmons, que a gente mandava direto pró casarão de esquina, que ali morava um senhor muito filantrópico, o seu Zarpa. No verão o dia inteiro era gente tocando campainha e batendo palma lá em frente.
O Mirtão meu irmão teve a pachorra de em época de eleição fazer umas cédulas à mão mesmo, com o nome, número e "partido político" do velho, e quando não tinha nada que fazer ficava lá no posto de gasolina da avenida dando umas de cabo eleitoral. Acreditem ou não, ou seu Zarpa teve muitos votos e quase foi eleito vereador!
O futebol sempre foi o divertimento número um, mas a moda sempre mudava, era carrinho de rolimã, pipas, peão, bolas de gude. O meu carrinho era porreta e levei um tempão prá fazer, no serrote e martelo emprestado do seu Nenê nosso vizinho. Fiz até um "cockpit" e nos meus sonhos de fórmula 1 era o Emerson Fittipaldi com a Lótus preta dele. Agora a pista, não poderia deixar de ser, a calçada novinha em folha do seu Zarpa, que como era inclinada e ficava na esquina tinha uma curva de quase noventa graus que demandava enorme concentração e perícia. As rolimãs deixavam uma infinidade de rastros de cobra bem fininhos meio brancos e fundos, parecendo um desses quadros modernos de Miró.
Um dia alguém soltou uma bombinha de cinquenta na calha da varanda dele. eu estava na escola, mas dizem que foi uma explosão e tanta. Não sei quem foi, mas protestei abertamente em nosso grupo, isso não se faz. Brincadeira tem hora.
Depois meu irmão faleceu afogado numa represa, um ou dois anos depois meu pai também se foi por doença, minha mãe pegou as malas dela e com razão se mudou com agente prá mais perto da família dela. Senti falta da minha vila, da minha rua, dos meus amigos, até do seu Zarpa.
Mais de vinte anos depois, um dia visitando uma tia que morava ali pertinho, depois de hesitar bastante resolvi passar pela minha antiga rua. A nossa casa tinha virado uma república de odontólogos, e estava toda largada, as janelas com a madeira apodrecendo, mato no quintal, as árvores; jabuticabeiras, pé de tamarindo, romã, pitanga que tanto amava foram cortadas por alguem que não gostava  nada de verde. Este vai morrer no inferno. Fiquei meio triste, e quando já estava em lágrimas quase deixando aquele meu passado prá trás lancei meu último olhar no velho casarão azul da esquina. Aquela fortaleza azul-piscina ainda estava lá, majestosa, igualzinha, com seus muros bem altos, como se me esperando ou algum outro moleque de interior como eu. Ao longe parei o carro prá ouvir o cocorecar de alguma galinha no fundo do quintal. Quando dobrei na contra-mão a esquina ainda deu prá ler "Seu Zarpa bicha" escrito bem grande e caprichado em letras de forma no murão azul-piscina.

1 opmerking:

  1. Ei, Joe! Fui lendo e viajando cá na minha infância. Tinha um moço vizinho do campinho de terra batida onde jogávamos bola (dessas mesmas de plástico que você citou) que todas as vezes que a bola caía no terreio dele ele só devolvia os pedacinhos picados por cima do muro. Rasgou mais de 10 que eu me lembre. Em compensação, todas as noites ele saía para trabalhar com o seu taxi e a gente enchia o cadeado do portão dele de cascalho fininho. Era a nossa vingança alegre ir para a escola na manha seguinte e ver que o carro dele tinha dormido na rua.

    Bons tempos, né, meu caro?

    Grande abraço. paz e bem.

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