Uma das coisas que eu achei meio estranho foram os cacos de vidro. Cada rastelada que eu dava no pomar, debaixo das goiabeiras, das jabuticabeiras, cada buraco que fazia com enxadão prá plantar alguma coisa me deparava com restos de garrafas quebradas. Aquilo foi me deixando cabreiro demais. Detesto cacos de vidro, não sei porque eles desde pequeno me dão arrepios, felizmente nunca me lembro de ter me cortado com eles, pelo menos nesta encarnação.
Por estes dias me apareceu um menino filho de um outro vizinho que tinha uma carroça puxada por uma égua marrom muito linda. A carrocinha dele era muito bem cuidada, com detalhes em verde e vermelho, os banquinhos forrados com couro de cabrito, tinha até espelho retrovisor. Eu nunca tinha visto uma carroça assim com espelho retrovisor, gostei. O moleque era a cara do Chico Bento dos gibis, não me lembro mais o nome dele, mas sem brincadeira falava igualzinho ao Chico. Fiquei pensando se o Maurício fizesse um filme do Chico Bento aquele moleque tinha que ter o papel principal, se tivesse no Brasil outro melhor ele seria o então o amigo do Chico o Zé Lelé. Ficamos amigos, ele vinha todo dia depois da escola me ajudar a rastelar as coisas e eu pagava uma diária que era um terço da diária de um adulto, que ao meu ver já era barata demais. Como naquela chácara tinha lixo demais, ferro-velho, restos de madeira com pregos, tijolos quebrados, etc, o Chico trouxe a carrocinha de aluguel do pai dele, por um precinho bem cômodo. Eu pagava por carroçada que a gente levava no depósito de lixo ali pertinho. Calculei bem de cabeça, deve dar umas duas três carroçadas no máximo. Ledo engano! Foram mais de quarenta carroçadas, desanimado até perdi a conta.
E dá-lhe a rastelar, cada rastelada uma garrafa. Fui me acostumando com as cores e rótulos escritos, eram de cachaça na maioria, tinha Oncinha, Bem-Bom, Pitu, até uma com o nome engraçado de "Na Bundinha" eu achei. Contei a estória pro Mirtão, ele se arrepiou. O Mirtão sabe mas nunca fala prá gente das coisas do oculto, do "outro mundo". Creio que ele deve ser um desses "médiuns" que não praticam. Ele se arrepiou todo, deu umas bocejadas, parecia que ia cair ali dormindo à minha frente. Deu uma sacudida no corpo, bocejou de novo e falou "Vixe, aí tem coisa!". Só não falou que coisas.
Continuei minhas limpesas, agora encontrava restos de vela, e aqui e ali um osso ainda quase intacto.
Eu tinha convidado um grande amigo meu escocês o Simon prá se viesse ao Brasil se hospedar lá comigo de graça e ajudar um pouco na minha empreitada ecológica. Eu convidei assim por convidar mas nunca pensei que ele viesse de verdade. Mas ele veio. Aterrisou em Cumbica sem falar uma só palavra em português. Não sei como ele se virou por lá, pois o Simon nasceu e foi criado no norte da Inglaterra numa região chamada Cumbria, e é quase impossível entender o que eles falam, eu até hoje me comunico com ele quase que mais por telepatia do que por palavras, porque o meu inglês é até hoje ruim, o dele incomprensível demais.
Uma tia-madrinha minha havia me dado uns sofás velhos que ela tinha prá colocar na varanda. Estavam um pouco surrados mas jogamos uns panos de rede em cima e os danados eram gostosos de se esticar. Prá mim nada como um bom sofazão num dia de domingo. O Simon no primeiro dia escolheu um que ficava no canto da sala. Ali ele sentava e a gente levava os nossos papos telepáticos diários. Notei que ele também bocejava demais.
Minha esposa também começou a bocejar, ficar nervosa à toa, até gritar. Talvez fosse aquele calorão infernal que fazia, aquela terra roxa basáltica parecia que era cobertura de bolo de algum vulcão escondido sob os nossos pés.
Eu tinha ganho do Mirtão uma dessa piscinas de fibra de vidro azul que ele não usava mais. Um espanhol veio trazer com o caminhão de aluguel dele. O cara era formado em economia, ou admnistração de empresas mas tinha escolhido ser motorista de caminhão de aluguel. As coisas parece que iam bem pro lado dele pois tinha um caminhãoziho próprio e estava comprando outro pro filho mais velho.
Eu inventei um sistema com umas mangueiras de borracha que vinham da bomba do poço até a piscina, instalei um chuveiro improvisado debaixo da parreira de uvas e a água jorrava fria e cristalina, era como tomar banho de cachoeira, mas sem cachoeira. Até o Simon que notei não gostava muito de tomar banho passava horas se refrescando ali embaixo. A família toda, pois a onda de calor naquele dezembro foi incrível.
Depois veio a tempestade. E veio de mansinho. Primeiro um silêncio sufocante, nada parece que se movia no ar, apenas o bando de Anús Brancos fugiu em revoada fazendo aquele alvoroço cotidiano deles. O céu ficou cinza-escuro, um vento de arrancar as telhas do barracão. As árvores do pomar balançavam os galhos como se numa dança possuídas por algum demônio africano. Os galhos do velho abacateiro balançavam e chegavam ao teto da casa depois voltavam num arco rumo ao céu, começou cair abacate prá todo lado, voar baldes, pedaços de madeira, pedras, telhas de zinco, etc. Estacionei a Kombi em frente à casa, longe do abacateiro, offcourse, a esposa arrumou as crianças, o Simon de olhos esbugalhados acho que também morrendo de medo, coitado. Eu me senti responsável pelo bem-estar geral de todos naquele momento. Se piorasse mais um pouco a gente entrava na Kombi e procurava refúgio em outro canto. Depois o vento se acalmou, a chuva choveu, um chuvaréu torrencial, lavando tudo pela frente. Não sobrou nada da minha horta em construção, as galinhas francesas acocoradas debaixo dos respectivos ninhos pareciam se derreter que nem sorvete.
Pensando bem aquilo talvez tenha sido um furacão que passou ali bem pertinho de Londrina naquela tarde de dezembro que infelizmente não vai voltar nunca mais.
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