Nada como uma boa calmaria depois de uma boa tempestade. Foram semanas de trabalho duro naquela terra vermelha. As minhas batata-doces plantadas em fileiras cresciam e se arrastavam por tudo que era lado, soltando suas raízes arroxeadas e doces pelo chão. Molhando a minha horta eu vislumbrava as verduras suculentas orgulhoso delas e principalmente de mim mesmo. O Mirtão veio me visitar num domingo. Trouxe uns peixes que tinha pego nas barrancas do Paranapanema. Quando viu aquele campo de batatas-doce que parecia mais um cemitério de sepulturas quase florindo não se conteve e me disse "Cê tá louco!, isso parece praga, meu, vai te praguejar a chácara toda!". Praga ou não, eu sei que eu gosto de batata-doce, principalmente frita, acho que me faz lembrar um pouco da Dona Tereza minha querida mãe, dos sabores das frituras dela e da minha infância que jamais vou me esquecer. Mas o Mirtão me botou medo, vai que fica que nem a chácara do meu amigo Naka, que plantou uns bambus uma vez prá comer os brotos, japonês é louco por broto de bambu, mas o bambuzal foi sorrateiro tomando conta de cada centímetro do sítio dele.
O coitado plantava mandioca, feijão, milho, só dava bambu. Bambu é foda, forma um sistema radicular gigantesco que vai se emaranhando debaixo da terra tal qual cabelo de nego embaraçado e solta os perfilhos onde lhe der vontade. E o que é pior, não tem como se acabar com eles, nem queimando tudo, acho que se queimar ele masoquista parece que gosta mais ainda, e vem com mais força, viçura e beleza, são piores de que "comigo ninguém pode". Eu cá comigo tenho o maior respeito por bambu. Acho que o velho Naka também.
Dei mais da metade dos peixes do Mirtão pro seu Bem-vindo o meu vizinho do lado. Passei o isopor por cima da cerca de arame-farpado e o velho agradeceu abertamente com um bonito enorme sorriso desdentado. Gostava do seu Bem-vindo, me ensinou a encabar as minha enxadas da maneira mais correta, deixando-as por uma noite num balde d'água prá madeira se estufar e o cabo nunca mais se soltar dali. Volta e meia ele trazia baciadas de uvas da parreira de uvas Itália dele, acho que um pouco só prá se mostrar, pois eu havia acabado de plantar as minhas mudas, que me custaram um dinheirão e infelizmente por mais que adubasse e molhasse não faziam sinal de ir prá frente, aliás penso que só iam prá trás, desfolhadas e raquíticas do jeito que estavam. Quem gostava delas eram as lagartas verdes. Tinha umas gordonas que caminhavam sonolentas pelas folhas como se estivessem medindo os palmos, notei que só tinham os "pezinhos" na parte dianteira, depois aquele corpão comprido demais, e nas traseiras onde se grudavam como um desses desintupidores de pia, e as danadas ficavam até de ponta-cabeça comendo na boa o meu parreiral. De longe dava prá ouvir o crcrcrcrcrcr... das folhas sendo vorazmente devoradas.
Fiquei imaginando que borboletas iriam surgir dali quando encasulassem, se chegassem a encasular pois seu Bem-vindo estava de olhos nela e de vez em quando balançava a cabeçona bronzeada e careca e me acenava que era prá pulverizar veneno antes que fosse tarde demais.
Detesto veneno de todo que é tipo. Dizem que é um desses males necessários da agricultura, talvez o sejam, não sei. O fato é que um dia trabalhei numa multinacional fazendo teste de venenos. Saía de manhanzinha pro campo com a caminhonete cheia de venenos até a boca, dezenas de baldes, pipetas, elenmeyers, filtros, pulverizadores de mão, tubos de co2, luvas, máscaras, macacões, botinas de borracha, estacas, trenas, marretas, pincéis, chapéu, enfim, um mundaréu de atributos inerentes a um bom "pesquisador" de produtos químicos. A gente era treinado a não usar de jeito nenhum o termo "veneno", que tinha um tom meio negativo, e sim "defensivos agrícolas" que soavam muito mais positivos, quase que filantrópicos nas orelhas cabeludas dos agricultores. Funcionava legal, até eu mesmo acabei me acostumando com isso, na minha euforia de agrônomo recém-formado eu estufava o peito e dizia cheio de orgulho que era "pesquisador de defensivos agrícolas". Até um dia, aplicando inseticida e fungicida em forma de pó num cafezal numa fazenda ali perto de Bela Vista do Paraíso durante uma semana inteira, sob um sol de rachar mamonas, quando estacionei a caminhonete na garagem do apartamento, dei dois passos rumo ao elevador e apaguei. Apaquei e foi quase de vez. Acho que foi desmaio. Deu um branco, tudo em volta girou, dançou à minha frente, a caminhonete embarreada, os pilares do estacionamento que teimavam em querer arrancar diariamente os meus retrovisores, o tapete, as paredes brancas, o elevador, o teto, tudo girando e griando num redemoinho sufocante que me fazia balançar e perder o equílibrio. Eu me lembro de querer vomitar, não sei se vomitei, não lembro mais, alguma forma de bloqueio. Naquela garagem escura ninguém me achou, o porteiro do prédio devia estar lá ligadão no rádinho de pilha dele ouvindo a rádio Atalaia, a cada dois ou três minutos o vozeirão do locutor gritava lá de cima, A-ta-lai-aaaaa, 20 horas e 45 minutos, depois dá-lhe música brega em cima, entrecortada por mais um A-ta-lai-aaa 20 horas e 47 minutos.
Fiquei deitado assim sem forças prá me levantar por um tempão ouvindo a A-ta-lai-aaa, pensando na vida e na morte, no passado, presente, futuro, enfim na minha sorte, ali naquele chão gelado de concreto daquela garagem semi-abandonada...
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