De repente sem motivo aparente as coisas começaram a andar dando errado pro meu lado lá naquela chácara, pequenos sinais do além talvez, mas sentia na carne que precisava tomar cuidado, só não sabia ainda com o quê.
Estava sozinho lá no quintal tentando mudar de lugar um postinho de concreto que alguém um dia plantara bem no meio do meu caminho. O Tião estava dentro da casa trocando do jeito dele toda a fiação, que continuava a dar curto-circuito sem parar.
Dei uma paradinha prá tomar uma água e econtrei o bicho pendurado no velho telhado milenar.
"Tião, cuidado bicho, não vai me despencar daí de cima!". Depois que alguém me contou que o Tião vivia despencando dos postes por onde subia como eletricista aposentado eu comecei a ficar mais preocupado com ele. A gente nunca sabe, não tinha seguro acho nem plano de saúde nem nada, se caísse a culpa era só dele, mas como "empregador" talvez acabasse juridicamente virando pro meu lado.
Olhei os fios subindo e descendo das paredes como cipós azuis, amarelos, vermelhos, se encontrando em algum nó amarrado com fita isolante depois sumindo de vista prá se encontrar de novo só Deus e Tião sabiam aonde. Gritou lá de cima "Iiiii acabou a fita isolante!", "não dá pro senhor ir buscar? Se der busca também uma maçaneta nova prá porta do banheiro, uns soquetes e umas lâmpadas mexicanas de 100w. Umas latinhas de skol até que não ia ser mal hoje no fim do dia prá comemorar !" Lá fui eu prás casas de contrução com mais uma lista na mão. Tinha uma casa que ficava há uns dois km dali, era só subir uma estradinha de cascalho, virar do lado da UEL, cortando caaminho por um loteamento vazio que não foi prá frente. não sei porque, lugar muito bonito, dava prá avistar Londrina todinha brilhando ao sol do meio dia, aquela matinha ainda meio virgem do lado da fábrica de leite, os prédios se aproximando suspeitos e sorrateiros, a civilização finalmente chegando àquelas bandas do mundo esquecidas pela maioria até então.
A loja de construção era de um antigo colega de futebol que alguém apelidou de Reverendo, prá falar a verdade nunca lhe perguntei o nome, como tinha cara de padre prá mim era Reverendo e pronto. Ele gostava de jogar de centro-avante, ficava só na "banheira" esperando, mas era ruim de bola que nem só ele, e tinha uns que o chamavam de Moon, referindo-se àquele antigo reverendo da seita religiosa da Amazônia. Eu me lembro de ter dado um ou dois passes prá ele numa pelada na porta do gol e o bicho chutou lá no mato. Dali prá frente virei fominha e nunca mais passei a bola prá ele, que tirava o óculos de fundo de garrafa, olhava prá gente e "com toda razão" reclamava; "Pô ninguém passa prá mim!". Passar prá quê, ele era futebolmente funesto, um zero à esquerda aquele reverendo.
Entrei na lojinha dele, que nada mais era do que um barracão improvisado, com umas ferramentas nas prateleiras, onde as galinhas faziam os ninhos e botavam. Falei, "Grande Reverendo, lembra de mim, das nossas antigas peladas de domingo de manhã? ". Eu nunca havia me esquecido dele e dos balões que dava com a bola, ainda por cima chegava lá no clube ainda de madrugada, com o jornalzinho debaixo do braço e era o primeiro a assinar a lista de presença. Os 11 que chegassem primeiro jogavam a primeira e segunda partida do domingo. Ele fez aquela cara de sonso de quem não se lembrava mais, mas acenou com a cabeça que sim. "Poxa, quanto tempo, Manoel né? ". Manoel o cacete, meu nome era Joe, mas prá não complicar pois estava com pressa deixei-o chamar de Manoel mesmo, que diferença faz, não é mesmo?.
Entreguei a lista do Tião, encomendei uns metros cúbicos de areia lavada, dei o endereço da chácara, paguei em dinheiro e fui embora. Ele ficou me olhando profundamente, como se tateando as coisas nas brumas escondidas da escuridão do fundo da memória. Uma galinha carijó alaranjada pulou em cima do balcão cacarejando toda prá mostrar o novo ovo-rebento dela. Reverendo pegou-a no colo com muito carinho, alisou-he as asas coloridas e pigmentadas e comentou suspirando, "bichinho de Deus!".
Quando abri a porta da Kombi, e dei o toque de ignição ainda ouvi um grito de eureca vindo lá do balcão, finalmente se lembrara de mim, e completou; "Era do time do seminário, né? "
Quando voltei ao silêncio da chácara Tião estava tirando uma soneca debaixo do pé de abacate. Como o chão estava molhado ele desamassou e jogou umas caixas de papelão pelo chão e roncava e apitava gostoso com o barrigão branco virado prá cima. Fiquei com vontade de jogar um bom balde d'água gelada em cima dele, mas não sei porque tive que rir só com a a satisfação daquela idéia.
Meu riso desapareceu quando abri a porta da cozinha e me deparei com o resultado da fiação. Meu Deus do Céu, aquilo parecia uma teia feita por alguma aranha embriagada que tivesse ainda por cima fumado uns três baseados sozinha, era fio indo e vindo, saindo e voltando, pulando, rebolando, dançando e comemorando freneticamente pelo teto sem forro daquele meu velho casarão.
Como acho que demorei demais na loja do Reverendo, Tião cansou de esperar pelas coisas e emendou tudo sem fita isolante nem nada. Fiquei com receio de apertar o botão do interruptor, pois da última vez que o fiz as lâmpadas mexicanas estouraram todas sem perdão. Como sempre a minha curiosidade foi bem maior que o meu medo, coloquei uma havaina de borracha no pé prá amenizar o choque, respirei bem fundo, contei até três e apertei o botão desbotado. Assim como num milagre, num passe de mágica, fez-se luz. Corri estupefato aos quartos, sala, banheiro, misteirosamente graças ao velho Tião havia luz em todos os cômodos. Não sei até quando, mas que havia luz, havia. Queria acordá-lo prá agradecer pela luz, mas o barrigão ainda subia e descia sincronicamente com a respirão entre um apito e outro, parecia um desses sapos de brejo dormindo de ponta-cabeça.
Devagarinho me aproximei dele, que deu um grunhido, virou-se de lado e continuou a sonhar seus sonhos tianescos.
Eu me agachei e coloquei duas latinhas de skol bem geladas do lado daquele travesseiro de papelão.
Depois voltei ao meu pesadelo que era aquele postinho de concreto que balançava e balançava tal qual um dente-de-leite querendo cair mas não havia meio de tirá-lo do meu caminho.
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