Esta estória aqui que estou escrevendo da chácara era prá ser uma estorinha dessas contadas rapidinhos dentro de uma página ou duas no máximo, mas sabe como é, como papo vai papo vem, uma coisa vai levando à outra, lembranças dos detalhes ocultos vão assim surgindo das brumas daquele passado distante prá se desvendar num segundo aqui à minha frente.
Quando levei a postada achei que precisava era me benzer. Comentei com o Mirtão, o qual que ficava todo fim do dia esperando voltar da loja dele. Ele nem precisava mais telefonar, exatamente às 17.25h eu colocava as Brahmas chopp dentro do freezer. Se ele demorasse um pouco mais do que de costume abria antecipadamente uma gelada prá tomar junto com a esposa, que sei que também curtia bem aquelas merecidas horas de lazer. Quando o portão elétrico do quintal como num "Abra-te Sésamo" apitava e subia rangendo os seus dentes de metal, a Parati aparecia e estacionava perfeitamente numa brecha entre os pilares brancos da garagem. Não sei como ele conseguia estacionar assim, sem manobrar nem nada, tchabum direto entre os pilares, uma vez eu medi e ficava menos de meio palmo de cada lado dos retrovisores.
Não sei porque presto atenção nestas coisas bobas, acho que porque talvez sempre fui um péssimo motorista. Como tenho vergonha de ficar manobrando infinitamente pelas vagas apertadas desta vida e dando os meus vexames, só procuro as bem espaçosas nas quais estaciono com toda segurança e quando não tem ninguém olhando por perto. Tinha um pouco de inveja das manobras do Mirtão, grande motorista, grande irmão. Fiquei um tempão com a família hospedado na casa dele antes de me mudar práquela bendita chácara.
Mas me mudei e agora estava precisando me benzer. A minha cunhada chegou do trabalho e entrou no meio da estória. "Tem uma benzedeira, a Dona Rosa, que fica ali atrás do antigo Vitorino, cê sabe aquele estádio antigo do Londrina em frente à rodoviária". Como não ia saber, quando criança assisti muito jogo do LEC nas arquibancadas daquele estádio, um dia até uma final memorável acho que no campeonato paranaense contra o União Bandeirantes. O juiz quis dar um penalty nos últimos minutos do jogo contra o União e o dono do time, um tal de Meneguel ficou muito puto. Gritou lá do banco, "Se colocarem essa bola na marca do gol eu tiro o revólver e acabo com ela. Aqui ninguém vai cobrar penalty nem nada!". Penso que depois disso ninguém teve mais a coragem de cobrar. A polícia apareceu, deu zebu, aquele time do deixa-disso entrou em ação, foi um fuzuê danado. Moleque adolescente eu adorei aquele jogo, pena que não me lembre mais quem ganhou. Torcia pro LEC, mas acho que o União merecia.
Mas eu fui à benzedeira. Levei umas roupinhas das crianças, uma camiseta da esposa, e escondido dele, uma cueca zorba do Mirtão que minha cunhada sorrateiramente empilhou entre as outras.
Se não ajudar pelo menos não atrapalha. Fui sozinho, dirigindo e procurando ler os nomes das ruas. Naquela época não usava óculos e isso era bem mais fácil. Hoje em dia é um tal de põe óculos, tira óculos, coloca o errado, com esse não enxerga longe, com o outro não enxerga perto, perde o bifocal, acho que vou acabar é pondo lentes. Óculos prá mim é como uma dentadura dos olhos. A esposa comprou um livro de um tal de Dr. Bates que em holandês se chama Natuurlijk zien ( enxergar naturalmente).
São exercícios bolados por ele que se a gente fizer direitinho a visão volta ao normal (?!), segundo o Bates pelo meno. Os comentàrios do prefácio eu já li e dizem que funciona. Na capa verde tem um balãozinho colorido, um vulcão com o topo coberto de neve, um girassol, árvores, um caminho de terra, um palanque de madeira com uma teia de aranha grudada nele, uma cerca da mesma cor das margaridas e uma boroboleta bem bonita azul voando livre pelo ar. Penso que a borboleta seja um símbolo da nossa visão, a liberdade de se enxergar com os próprios olhos este mundo tão lindo ao nosso redor.
Como infelizmente não encontrava a casa da dona Rosa, tive que ir perguntando prá quem encontrasse pela frente. Depois de perguntar várias vezes e obter diferentes trajetórias deparei com uma velha gorda de vestido estampado varrendo e jogando água tranquilamente na calçada dela. Esta é a última chance, pensei, se a gordona não souber eu volto prá trás sem me benzer mesmo. Já eram quase 16 e 15 minutos e estava pensando nas Brahmas do freezer do Mirtão. Ela me abriu um sorriso, encostou a vassoura de piaçaba e cordialmente me indicou o caminho. Ficava ali pertinho, passando aquele buracão, virando à esquerda, depois à direita, e à esquerda de novo. Agradeci, tomei um gole d'água de mangueira e fui embora.
Quando lá cheguei notei que haviam várias plantas de nomes conhecidos por mim. Do lado do muro "comigo ninguém pode", montes de espada de Adão, Arruda, moitas de capins diferentes, Samanbaias esquisitas por entre bonequinhos de gesso que pareciam anjinhos sem asas. Tive a impresssão que um deles ficou me olhando fixadamente pelas costas quando entrei.
Ouvi a voz de um homem lá dentro conversando com a Rosa.
Fiquei ali de pé na minha, um pouco encabulado, um pouco arrepiado com aquele olhar do anjinho sem asas, apenas esperando a minha vez, com o saco plástico de roupas dobradas e a cueca do Mirtão firmes debaixo do braço.
De repente não me sai de lá o vendedor de mudas. Dele comprara as tais mudas de uva que paguei um dinheirão e não foram prá frente. Ele fingiu que não me reconhecia, mas eu perguntei "O sr. é o vendedor de mudas, não é?". Um pouco contrariado, acho que mais com vergonha por também estar ali se benzendo, ele respondeu que sim. Eu disse que foram tudo pro brejo, nenhuma pegou. Ele murmurou "talvez o calor" e com um sinto muito meio sem graça foi-se embora.
Dona Rosa estava esperando na porta. Entrei. Ela ainda me disse, "O sr. conhece esse coitado?". Disse que era o meu vendedor de mudas, e que infelizmente as ditas cujas das uvas dele não foram prá frente. Ela balançou a cabeça como que sabendo a resposta prá todos aqueles meus porquês.
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